Projeto microtodos
Projeto MicroTodos
  
 


 
 

Carta aberta aos professores

 

A minha preocupação com a educação em microbiologia teve origem em alguns fatos observados ao longo dos anos, na condição de docente, pesquisadora, mãe, dona de casa e...enfim, com muito orgulho, de cidadã brasileira.

Em 1971 iniciei a docência em bioquímica de microrganismos na Universidade de São Paulo. Durante muitos anos, ministrei aulas de Microbiologia e Imunologia aos alunos da Faculdade de Ciências Farmacêuticas. Considerava essas disciplinas, e continuo a considerar, tema da mais alta relevância para os futuros profissionais que iriam trabalhar com os microrganismos em laboratórios clínicos, na indústria ou em farmácias.

A partir de 1985, com o nascimento de meu filho, tive a oportunidade de perceber e avaliar o que era, no nosso país, a Microbiologia longe dos bancos da Universidade. Aos 3 meses de idade, meu filho passou a freqüentar um “berçário”. Reconheço, e tenho presente até hoje, o carinho e a atenção que recebeu dos profissionais responsáveis por sua segurança física e mental. Reconheço, e tenho presente também até hoje, minha surpresa ao perceber o despreparo e a desinformação daqueles profissionais quanto aos procedimentos, cuidados e hábitos de higiene a serem adotados em uma comunidade onde convivem, além de crianças de 3 meses a 4 anos, adultos, plantas, animais e microrganismos. Acredito na vontade que tinham de acertar no cumprimento eficiente de suas tarefas. Todavia, o total desconhecimento do mundo microbiano acarretava, no dia - a - dia, uma lacuna irrecuperável no exercício da atividade que lhes cabia exercer com competência... CUIDAR de CRIANÇAS.

No Jardim da Infância, em uma nova escola, percebi, desde o início, que não havia, nos banheiros, sabão de qualquer tipo. Durante 5 anos, tentei convencer a coordenação da escola da importância do hábito de lavar as mãos e do uso de sabão na prevenção de doenças contagiosas. Conforme pesquisa veiculada pelo boletim da Sociedade Americana de Microbiologia, se os indivíduos, no mundo inteiro, adquirissem o hábito de lavar as mãos sistematicamente, teríamos uma queda considerável no índice de infeções causadas por microrganismos.

Na 5ªsérie do ensino fundamental, soube que os alunos seriam apresentados ao mundo microbiano! Meu entusiasmo novamente ressurgiu na esperança de que, com o aprendizado em sala de aula, os próprios alunos percebessem a importância dos hábitos diários de higiene. O reino Monera surgiu no livro didático assim como alguns protozoários e vírus causadores de doenças. Qual não foi a minha decepção ao ler, tanto no livro didático como na matéria indicada para as provas, que o mundo microbiano, mais uma vez, fora reduzido a uma seqüência de nomes e definições ..."Monera não tem núcleo verdadeiro!"..."Os vírus não são células!".. ou a tabelas a serem memorizadas com os nomes das fases dos ciclos dos parasitas, nomes das larvas, etc., etc. Percebi, na ocasião, como o ensino de microbiologia estava distante do processo educativo.

Na 6ª série, ouvi a seguinte frase:

_“...mãe, você venceu!! Puseram sabonete nos banheiros da escola!!!..”.

Obviamente minha vaidade não foi suficiente para que eu ficasse feliz com a notícia e, muito menos, ficasse contente com uma luta de 7 anos para a aparente “vitória”. Algo estranho havia nesse caminho! Na correria do dia - a - dia, continuei observando o comportamento dos indivíduos nas várias situações em que me encontrava: um sobrinho recém-nascido sendo vestido enquanto o faxineiro do berçário esfregava as paredes; uma visita a um parente operado; uma mulher com o olho picado por inseto sendo instruída por um balconista para a compra de cápsulas de “Tetrex”, um antibiótico que sabidamente não auxiliaria no processo da cura mas exporia a pessoa a sérios efeitos colaterais; um dentista que dizia esterilizar os instrumentos de trabalho em estufa a 90°C durante cinco minutos, quando sabemos que o tempo mínimo necessário para garantir a eliminação de alguns vírus e bactérias é muitas vezes superior ao que estava sendo aplicado.

Em 1992, assumi a coordenação de graduação do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. A minha identificação e preocupação com a docência em microbiologia já eram, naquele tempo, bastante evidentes e fortes.

Durante 6 anos, tive a chance de conhecer melhor o aluno da graduação dos diferentes Cursos da Universidade de São Paulo: Medicina, Odontologia, Nutrição, Terapia Ocupacional, etc. Com os demais professores do Departamento, trabalhei no sentido de melhorar a qualidade do ensino, sempre na tentativa de criar condições favoráveis a que a microbiologia não fosse vista como uma disciplina a mais no currículo. Após longa caminhada, somente em 1996 foi implantada a disciplina Microbiologia Básica no curso de Ciências Biológicas responsável pela formação dos professores de ciências e biologia. Por razões que todos conhecemos, o mundo microbiano só poderia ser levado ao conhecimento dos cidadãos, nas salas de aula, com a ajuda dos professores.

A existência destes seres microscópicos, invisíveis a olho nu, acarreta ainda, para o processo ensino/ aprendizagem da microbiologia um problema adicional. Como ensinar ou aprender aquilo que não se vê? E se não temos o microscópio? Como convencer que micróbios existem, estão nas nossas mãos, no nosso intestino, no ar, no espirro, no chão, na Terra e possivelmente fora dela? Estava fechado o ciclo. Os pesquisadores estão fechados em seus laboratórios e os professores de ciências, (por questões curriculares) na sua grande maioria, desconhecem o mundo microbiano. O desconhecido, o que não pode ser visto ou tocado causa medo! Diante do medo, aparecem a paralisia e a fuga que deixam, no rastro, a ignorância. Poucos são aqueles para os quais o medo representa um desafio em busca do desconhecido. Enquanto desconhecermos o mundo microbiano, ele permanecerá ausente da vida dos nossos alunos.

Acredito na responsabilidade dos pesquisadores e docentes na condução dos rumos da educação em Microbiologia no Brasil. Somente a conscientização proveniente de um aprendizado significativo mudará o comportamento dos indivíduos nas suas relações com o meio em que vivem de forma a não destruí-lo, mas, sim, de preservá-lo ou transformá-lo na direção de um desenvolvimento sustentável.

Como coordenadora da área de educação na Sociedade Brasileira de Microbiologia, considero urgente o desenvolvimento e adoção de uma política educacional em microbiologia para o ensino fundamental, médio e superior. Uma política com bases intimamente ancoradas no cotidiano das relações dos indivíduos com os seres microscópios.

Viver com os micróbios é condição inexorável da vida.

Viver harmoniosamente com os micróbios é dever de todo o ser humano.

Conhecer o mundo dos micróbios é um direito de todo cidadão.

Estas foram as reflexões que originaram o projeto “Microbiologia para Todos”.

Profª. M. Ligia C. Carvalhal