Edição 33 - Agosto 2015     

O drug repositioning e a doença de Chagas: soluções contra barreiras econômicas e terapêuticas

Guilherme Jaime de Castro

Da concepção de uma nova droga até sua chegada às farmácias, gastam-se em média nove anos apenas nas fases de ensaio clínico e homologação pela agência reguladora nacional. Ou seja, o processo é bastante dispendioso, e, além de tudo, não tem garantia de sucesso. Assim, para que a indústria farmacêutica se engaje no desenvolvimento de um fármaco, o pressuposto é que ele seja promissor financeiramente, o que dificulta a pesquisa de medicamentos para condições que afetam predominantemente os países em desenvolvimento, como as doenças tropicais.

Um exemplo é a doença de Chagas, causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi (T.cruzi). A doença é transmitida por meio do inseto conhecido como barbeiro que, ao defecar no local onde pica os humanos, pode levar à inoculação do Tripanosoma presente em suas fezes. Os sintomas mudam ao longo da infecção, passando desde febre e gânglios linfáticos aumentados na fase aguda até hipertrofia dos ventrículos cardíacos, que aparece de 10 a 30 anos depois numa pequena parcela dos indivíduos afetados, a chamada fase crônica.

Presente em áreas endêmicas do sul dos Estados Unidos até o sul das regiões patagônicas de Chile e Argentina, a patologia é tratada com fármacos descobertos há mais de 40 anos, aos quais algumas cepas do agente causador já são resistentes; além disso, os medicamentos possuem diversos efeitos colaterais e eficácia questionável na fase crônica da doença – que é quando se faz a maioria dos diagnósticos.

Pensando nisso, têm-se adotado nos últimos tempos estratégias como o drug repositioning no desenvolvimento de novas terapias para condições como as doenças tropicais. O conceito consiste em descobrir novos usos para drogas já aprovadas para o tratamento de moléstias em humanos, pulando muitas etapas em pesquisa e regulamentação e assim suprindo a necessidade de tratamento para enfermidades muito comuns, mas negligenciadas.

No caso da doença de Chagas, um grupo do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), coordenado pelo Prof. Dr. Ariel Mariano Silber, promoveu uma investigação sobre drogas antagonistas do receptor neuronal NMDA de mamíferos e suas possíveis ações contra o T. cruzi. O receptor NMDA é uma proteína presente nas células do sistema nervoso central, importante para a formação de memória e a aprendizagem. Bases para a investigação seriam as evidências de que o T. cruzi expressaria proteínas estruturalmente semelhantes ao referido receptor, que regulam a concentração de cálcio intracelular - parâmetro importantíssimo para a manutenção da vida do protozoário.

Inicialmente foram testadas três drogas com potencial tripanocida (que provoca a morte do T cruzi); a partir daí, os experimentos prosseguiram com a droga que exibiu o melhor resultado para a menor toxicidade no hospedeiro, que foi a Memantina. Essa droga já é utilizada no tratamento do Mal de Alzheimer e é justamente um inibidor não-competitivo do receptor NMDA de mamíferos. Como a sua farmacocinética e dose máxima, seus efeitos colaterais e tolerância ao tratamento por parte da população são já conhecidos, assim há possibilidades de encurtar o caminho para a aplicação da Memantina ao tratamento da doença de Chagas.

Estudos pré-clínicos estão a caminho para corroborar o novo uso da Memantina. A iniciativa do grupo contribui com uma nova possibilidade de terapia para uma condição negligenciada e com a difusão do drug repositioning. É fundamental que se explore melhor o potencial dos medicamentos que já estão nas prateleiras, em direção a um uso mais racional e eficiente dos esforços em pesquisa e à superação de barreiras econômicas no desenvolvimento de novas terapias.

Para saber mais:

Artigo - Memantine, an Antagonist of the NMDA Glutamate Receptor, Affects Cell Proliferation, Differentiation and the Intracellular Cycle and Induces Apoptosis in Trypanosoma cruzi.